“Sagrados Corações de Aveiro”
À primeira dentada o doce abre seu coração de ouro, luzindo como incandescente, um ser de magma. Os ovos moles de Aveiro são só pele e coração, como se fossem maduros, sem paciência para corpos complexos com outras tarefas além da tarefa do amor.
Sempre penso que aludem a uma espiritualidade, a alma dos doces, porque a sua alvura é limpidez e pureza. Pousam à mão e são esse coração apenas dentro da alma. Quem os come, come amor, talvez se prepare para amar. Quem os come talvez se prepare para ser feliz. Circulam entre a gente por luxo afetivo. São sempre um belíssimo modo de se gostar de alguém.
De verdade, a culinária dos ovos moles é uma ourivesaria. Uma espiritual ourivesaria alimentar. Coisa para adornar a dimensão imaterial de quem somos. Coisa para adornar paixões e amizades. O lado mais memorável da vida.
A obra de Albano Martins é a tradução dessa quase imaterial condição do doce. O que também faz com que ele seja cultura mais do que simplesmente hábito de gula. As formas tradicionais são denunciadas na imensidão da brancura, como efectivamente seres dotados de coração que emergissem da protecção afetiva, imensa e etérea da alma. Agigantados doces, eles transformam-se na rua em altar e ficam, ao seu jeito, sacralizados no sentido mais bonito do termo. São corações índigo, esses generosos amores expostos que se entregam.
É muito impactante encontrar o conjunto escultórico de Albano Martins. Se os altares tradicionais nos podem intimidar, é certo que a gentileza dos jardins, a vocação do passeio e a experiência do doce nos encoraja. O sagrado, afinal, só existe nos objetos com os quais estabelecemos uma relação. Se desconhecermos o objeto ou o enclausurarmos não o exercemos e o sagrado é sempre um exercício, uma utilização. Sem prática não há senão a ideia e as ideias sem gesto não passam de intenções. Abeiramo-nos, pois, da obra de Albano Martins e sentimo-nos convidados para o altar, para o gesto, somos parte dessa celebração de algo que, por séculos, se tornou identidade.
Os sagrados corações de Aveiro não poderiam estar em melhor lugar, na rua, como centro de cidade e centro do colectivo das pessoas. Impressiona-me como a arte pode ser brilhante e comunicar com toda a gente, numa pulsão universal que nos inclui, de facto, nessa tradução que nos implica e enternece. O que Albano Martins deixa à gente de Aveiro é da ordem da alegria. Alegria pura, isso de falar a todos encontrando um denominador comum que nunca poderá ser diminuído ou menosprezado. O altar sem temor de Albano Martins é de todos. Coisa nobre de toda a gente.
Belíssimo, elegantíssimo, divertido e justo, o conjunto escultórico de Albano Martins é monumento aos que se ocupam sobretudo com a tarefa de amar. Como devia de ser toda a arte pública, um enaltecimento da identidade e um favorecimento da capacidade de gostar. Aveiro revela, assim, o seu aparelho cardíaco. Aveiro homenageia o seu aparelho cardíaco, que é ponto de partida para quem fica e motivo para quem quer voltar. A obra de Albano Martins torna-se um absoluto lugar de encontro. Um centro da cidade, um centro de cada pessoa. Núcleo, gema, coração.
(texto introdutório do livro/catálogo do Monumento aos Ovos Moles de Aveiro)
Valter Hugo Mãe Chancelaria: 2015-2016
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